quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Pesado

Hoje foi um dia pesado, considero um dos dias mais difíceis que tive desde que entrei para a equipe de jornalismo em uma rádio AM no Rio de Janeiro. Não faz muito tempo que estou lá, mas sinto que já é um bom começo para vivenciar uma parte do jornalismo. São muitos os desafios, as diferentes reportagens que temos que fazer e a preocupação que devemos ter para adaptá-las à linguagem radiofônica. Mais para frente posso contar mais da experiência de estar lá.

Voltando ao assunto que norteia 0 meu relato, ou desabafo, hoje a tarde foi pesada.
Nunca tinha ido ao Instituto Médico Legal (IML) no Rio de Janeiro. Um lugar fantasmagórico que fede a formol, cheira a morte e dor.
Pois é, hoje foi a minha estréia no IML. Segundo um colega de reportagem, hoje eu "tirei a minha virgindade" do IML. A tarde foi longa, saí da redação esgotada e sem ter a sensação de ter cumprido a missão.

São muitas as surpresas que nos esperam a cada dia que chegamos à redação. Para mim, pelo menos, me sinto mais aliviada quando percebo que o esforço tenha valido a pena. Hoje até valeu, pela experiência. Muito aprendi. Voltei para casa sem forças, e com um sentimento de impotência. Aquele jornalismo de transformação social que acredito todo repórter deve carregar consigo, hoje me vi discrente disso. Às vezes não é possível mudar as coisas. Às vezes não é possível ser neutro, não se envolver, não se comover.

Assim que chego à redação sou mandada diretamente para o IML para registrar o processo do reconhecimento de familiares que perderam filhos, sobrinhos, primos, maridos em um confronto com a polícia civil na favela da Coréia, em Senador Camará na zona norte do Rio. A operação policial, como tantas outras diariamente ganham as páginas principais nos jornais do Rio. Dessa vez não foi diferente.

O confronto ontem deixou um saldo com número de mortos ainda duvidoso - ainda não se sabe se foram 12 ou 16 mortos. A assessoria da polícia civil apenas afirmava 12 entre eles um policial e uma criança de 4 anos vítima do tiroteio.

Como abordar os familiares de jovens mortos, que a princípio segundo a polícia, teriam envolvimento com o tráfico de drogas? Eu não estava preparada. E como estar preparado para uma situação dessas?

Muitos parentes estavam visivelmente abalados com um mixto de indignação, ódio, tristeza e sentimento de perda. Como falar com elas, como se aproximar em um momento tão particular? Não foi fácil. As reações são as mais diversas e imprevisíveis. E nessa história toda, qual o meu sentimento de impotência frente a uma realidade de violência. Não entro no mérito se eram parentes de traficantes ou não, eram seres humanos com mães. E o que fica disso tudo: "muito ódio, muita raiva" (segundo uma das familiares) e descontentamento, principalmente com a polícia e junte-se ainda a imprensa que está sempre na hora certa/errada para retratar a desgraça dos outros.

Eu não estava ali para fazer sensacionalismo, eu queria saber o lado humano da coisa. E as famílias que ficam, como é viver em um lugar onde o Estado não chega e o que impera é a lei do mais forte. Queria saber dos sentimentos das pessoas que perderam entes queridos, mas sem invadir a privacidade do outro. "Ele era tão jovenzinho, tinha 20 aninhos, como é que fizeram isso com ele... / Eu sou camelô, tenho que trabalhar, ele tinha que me ajudar com o sustento / Não quero falar sobre isso, eu não falo com imprensa, se quiser saber mais coisa vai falar com a polícia que matou eles... / Que direitos humanos o quê, e o que fazem com a gente é direito humano?...", alguns dos breves relatos que consegui de pessoas diferentes.

Pois é, dessa vez não consegui me distanciar. De tão comovida, nem fazer um relato emocionado fui capaz. A saída mesmo, pelo menos para tentar manter um certo equilíbrio num caos de total desordem de pensamentos, resolvi fazer mais uma daquelas matérias burocráticascomo como se não houvesse envolvimento com a situação.

"Muitos familiares compareceram, nesta 5a feira, no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, no centro do Rio para fazer o reconhecimento dos corpos. 7 deles já foram liberados, 5 ainda estavam no processo de identificação.... O laudo técnico será concluído em 15 dias. Muitos familiares manifestaram indignação com a atuação da polícia. Os enterros estão sendo nos cemitários... Do Rio de Janeiro, F.O."

Não foi nem será apenas a única ida ao IML. Estou ciente. Da próxima vai ser melhor.


Fabíola Ortiz