sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Qualidade na TV?

01/02/2008 |
Redação
Observatório do Direito à Comunicação

Esther Hamburger - Publicado originalmente na Revista SescTV

A qualidade da programação é determinada pela audiência? Ou a audiência determina a qualidade da programação?

Na entrevista deste mês, Esther Hamburger, antropóloga e professora do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), mostra como esse falso “dilema do ovo e da galinha” é construído e distorce a relação entre emissoras de televisão, público e pesquisas de audiência। Fala também sobre mecanismos de regulamentação e o que seria uma programação de qualidade, que foge ao estereótipo do que é estabelecido como o “gosto da audiência”.

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As emissoras, quando questionadas pelos críticos de TV a respeito da má qualidade da programação, rebatem dizendo que veiculam aquilo que o público quer assistir, medido pela audiência।Como você vê essa questão?

Na resposta das emissoras a essas críticas está embutida a idéia de que uma programação de qualidade não segura audiência. Acho isso um grande preconceito. A televisão brasileira já teve uma qualidade reconhecida dentro e fora do Brasil. Quem tem memória da televisão nos anos de 1980 e 1990, por exemplo, lembra que a TV aberta era tida como um veículo de aprendizagem, porque trazia muita informação. E as pesquisas de audiência são uma medida nesse jogo da interlocução entre as emissoras e o público. Acontece que esse padrão de medida, no caso brasileiro, era muito distorcido, e ainda é. Por exemplo, até o final dos anos de 1990, essas pesquisas, inclusive o Ibope, excluíam as populações de baixa renda por não serem consideradas consumidoras. O anunciante só estava interessado no público a partir de um determinado poder aquisitivo, daí essas populações ficarem de fora do sistema. E como no Brasil tudo é paradoxal, isso significou que a televisão nivelou sua programação por cima ou pela média em vez de nivelar por baixo, como é o caso da TV americana, que até recentemente era uma coisa de muito pouco interesse. O paradoxo está no fato de que a TV comercial em geral é pensada como “nivelada por baixo” – porque essencialmente não é para ser provocativa, ela visa à reprodução de consensos –, mas a TV brasileira, até o fim dos anos 90, nivelou pelo meio ou por cima, resultando em uma qualidade de programação melhor, que hoje se perdeu. E se perdeu por esse preconceito dos programadores. Hoje, se a grande maioria é reconhecida como consumidora, a audiência é nivelada por baixo.

Quem é essa audiência?

Tudo isso [a relação entre programador, público e as pesquisas de audiência] é, na verdade, um jogo imaginário, porque não existe audiência concretamente. Você não junta no Estádio do Morumbi a audiência da novela das oito. Audiência é uma categoria simbólica, não existe de fato. Você não toca nela, você não distribui um questionário para ela. Você faz um questionário para poucas pessoas que compõem um coletivo que você está inventando. Audiência é um conceito construído de acordo com algumas noções sobre quem é essa audiência. O Rubem Fonseca [escritor brasileiro] tem um conto muito interessante que se chama “Mulher”, e conta a estória de uma revista feita para um público chamado de “mulheres de classe C”. A redação é toda de homens e quem narra o conto é um jornalista demitido de uma seção policial de um jornal diário e que só consegue emprego naquela revista. Ele é contratado para cuidar de uma seção de cartas do leitor. Começa a inventar a personagem que ia responder às cartas e inventa também cartas que essa personagem recebe. Depois de um tempo, ele começa a receber cartas de verdade, com consultas de verdade. No fim da narrativa, vem um técnico de pesquisa de audiência e revela para aquela redação que o público deles não era de “mulheres de classe C”, como eles imaginavam e construíam. Eles atingiam, na verdade, “homens de classe B”. A última revelação do conto é que uma das pessoas que se correspondia com o jornalista era o próprio editor da revista, que era gay, tinha uma vida secreta e revelava isso nas cartas. Então, é legal pensar justamente esses desentendimentos que surgem a partir das distorções das pesquisas de audiência. O que se faz na TV aberta, muitas vezes, é imaginar um outro que você solenemente despreza.

Então, a suposta escolha da audiência não determina muita coisa...

Não. Acho que a programação é basicamente determinada pela produção, por quem controla a programação. O público tem capacidade para optar entre aquilo que vai ao ar na TV aberta. Mas essa capacidade de escolha do telespectador é muito limitada; há um menu bastante limitado de programas a serem escolhidos. E eles são muito parecidos entre si. Para falar em qualidade da programação, temos que pensar fundamentalmente em quem está produzindo. Sem dúvida isso é mais importante do que pensar no público, em um primeiro momento. Quem está produzindo é quem tem efetivamente a possibilidade de fazer algo interessante ou não.

Discutir qualidade na programação passa por determinar mecanismos de regulamentação para as emissoras e produtores?

Isso não tem a menor dúvida. E acho que a demanda do público não é só por medidas como a classificação indicativa, que gerou tanto debate. Acho bom de fato ter lá uma classificação indicativa, mas não acho que seja a principal questão, porque as pessoas são capazes de olhar e ver se querem que seus filhos assistam aquilo ou não. Acho que a demanda do público é por respeito e por uma programação que não subestime a inteligência das pessoas. É qualidade nesse sentido: uma programação estimulante, desafiadora, que faça crescer. É muito mais barato fazer um programa de auditório – não que não existam bons programas de auditório, mas é uma das coisas mais baratas que tem. E aí você coloca a culpa na audiência pela falta de investimento em programas de qualidade maior, mais elaborados. Agora, as melhores coisas na TV brasileira foram feitas com risco, já que não se enquadravam no que é veiculado normalmente. Mas acho que é isso que o público espera: coragem de quem detém a capacidade de produzir de inventar coisas novas.

O que seria uma programação de qualidade?

Não sei se qualidade é um termo bom. Não existe algo objetivo que a defina. O que pode ser bom para mim não é bom para o outro, por exemplo. Qualidade pode ser apenas a qualidade técnica, ou só qualidade ideológica – um bom programa que ninguém assiste por ser tecnicamente ruim, por exemplo. Então o que é uma coisa que escapa do estereótipo? Acho que é algo inteligente, como as séries Hoje é dia de Maria e Cidade dos Homens, o programa infantil Castelo Rá Tim Bum, só para citar algumas das muitas iniciativas que vemos por aí e que tiveram muita audiência. De certa forma, esses programas são “independentes” e representam a desproporcionalidade entre o que se tem de energia e capacidade de realização e aquilo que efetivamente ganha espaço de difusão na TV aberta.


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