quarta-feira, 26 de março de 2008

REPÓRTER BRASIL

24/03/2008

Violência contra detentos perdura e questiona poder do Estado

Ações governamentais e da sociedade civil buscam há anos mudanças na polícia, no sistema penitenciário e na atuação da Justiça para combater a tortura. Enfrentam, porém, a omissão e a realidade das relações de poder

Por André Campos

ONU aponta recorrência de maus tratos nos
presídios brasileiros e cobra ações do governo
para mudar essa realidade (Foto: Arquivo ACAT)
Em novembro de 2007, diretamente da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), ouviu-se mais uma vez uma denúncia recorrente sobre a realidade brasileira: a da existência, segundo a própria ONU, de "tortura generalizada e sistemática" para milhares de detentos do país. Baseadas na visita de especialistas em 2005, as alegações fazem parte de um amplo relatório, ainda não totalmente divulgado, que enfatiza também aspectos discriminatórios da violação, que atinge principalmente os afrodescendentes.

Há sete anos, a noção de "tortura sistemática" já estava presente em outro estudo da ONU, produzido a partir de inspeções realizadas no ano 2000. O documento descreve nada menos que 348 alegações concretas de tortura, ocorridas em 18 estados ao longo da década de 1990. Chama a atenção também para um extenso rol de omissões e irregularidades, que tornam a prática dessa violência um ato de responsabilidade partilhada entre altos escalões e a figura do carrasco.

Assim como as denúncias, as políticas federais para enfrentar o problema também não são novidade. Ainda em 2000, diversas entidades reuniram-se para celebrar o Pacto contra a Tortura, em defesa da aplicação da lei que tipifica o crime. Já em 2001 nasceu o SOS Tortura, um disque-denúncia extinto pelo governo Lula menos de três anos depois. No mesmo ano surgiu o Plano Nacional de Combate à Tortura - que, no entendimento da gestão atual, apresentou resultados insatisfatórios por focar-se excessivamente na punição, em vez de buscar mudanças de procedimentos e práticas.

Tais transformações são o objetivo do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura, apresentado em dezembro de 2005. Última aposta do governo federal, ele se baseia em articulações com os estados para alcançar resultados efetivos. Até o momento, aderiram ao programa 13 unidades federativas - Acre, Distrito Federal, Espírito Santo e Rio Grande do Sul, além de todos os estados do Nordeste.

Passados mais de dois anos, contudo, a iniciativa esbarra num velho problema: falta de compromisso dos setores da segurança pública e do sistema de Justiça. Em diversas instâncias, prevalece o silêncio sobre o assunto.

As causas

Entre outubro de 2001 e julho de 2003, mais de 25 mil ligações foram atendidas pelo SOS Tortura. Elas deram origem, após filtragem, a 2,2 mil denúncias encaminhadas às autoridades competentes. Em nada menos do que 85,8% dos casos filtrados, as suspeitas de abuso recaíam sobre agentes públicos. Entre eles, a Polícia Civil responde por 31,4% das acusações, a Polícia Militar por 30,6% e os agentes penitenciários por 14%.

Reunião do grupo de combate à tortura do governo
federal: dificuldade para articular políticas com
os estados (Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr)
E por que o Estado tortura? Para Luciano Mariz Maia, procurador regional da República na 5ª Região, permanece ainda uma forte noção do uso da violência como forma de punição. "A idéia de castigar é tão presente que, muitas vezes, a polícia nem tem indícios concretos, mas percebe alguém em "situação suspeita" e dá o bote. A pessoa, assustada, tenta correr, mas é alcançada, e a polícia começa a bater sem nem saber exatamente o porquê", descreve.

Além disso, diz ele, outra face da tortura é a sua adoção como "método investigativo" para que supostos criminosos confessem delitos ou "abram o bico" sobre provas. Nesse contexto, ressalta o procurador, reside uma realidade cruel: a da tortura como um ato que se perpetua justamente porque produz resultados efetivos. "Não é feita por psicopatas, nada disso", explica. "É uma escolha racional, que fará com que aquele profissional ganhe credibilidade e passe a ser visto como eficiente em sua instituição."

De acordo com estatísticas do SOS Tortura, as delegacias de polícia apareceram como os locais onde se torturou com maior freqüência (47,2% das denúncias). É nas carceragens da Polícia Civil que muitos suspeitos ficam presos durante o inquérito, à mercê justamente de quem vai investigar o crime - e, não raro, em total incomunicabilidade com o mundo exterior. "Constatou que a maioria dos suspeitos acreditava que suas famílias não haviam sido informadas de sua prisão e seu paradeiro", atesta o relatório da ONU de 2000.

Unidades para condenados ou para acusados que aguardam julgamento presos - penitenciárias, centros de detenção provisória, etc. - também surgem em destaque no panorama do disque-denúncia (26,9% dos casos). Segundo o padre Gunther Zgubic, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, a tortura é uma realidade histórica nas relações de poder que permeiam esses locais.

Para exemplificar, o religioso relata um caso ocorrido no Complexo do Carandiru poucos anos antes de sua implosão. Um preso foi proibido de receber visita íntima porque sua mulher não obteve um crachá necessário. Em represália, atacou o agente que negou a autorização, provocando cortes superficiais. "Levaram-no do Pavilhão 9 até a sala da diretoria, espancando-o com canos de ferro", diz. Lá, descreve o padre, foram convocados os agentes novatos para uma espécie de ritual de batismo. "Isso era uma tradição", afirma. "O novo funcionário tem medo dos outros, e, depois que bate uma vez, nunca mais pode abrir a boca, porque também é torturador."

Políticas públicas

Atualmente, uma das principais propostas do governo federal para mudar essa realidade é a saída dos Institutos Médico-Legais (IMLs) do organograma das secretarias de Segurança Pública. A importância da perícia médica para obter provas em casos desse gênero é ressaltada por Pedro Montenegro, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) - órgão que coordena o Plano de Ações Integradas. Ele afirma que a medida fortalecerá a independência desses institutos. "Se há uma denúncia de tortura em uma delegacia, é o próprio delegado quem vai ter de requisitar a perícia. Veja só que contradição."

Instituto Médico Legal de Pinheiros, em SP: falta
de independência do órgão complica apuração
de casos de tortura (Foto: Valter Campanato/ABr)
Luiz Carlos Galvão, presidente da Associação Brasileira de Medicina Legal, é favorável à separação. Ele afirma ser o Brasil um dos seis países do mundo em que a perícia está vinculada ao poder repressor (somente no Amapá e no Pará há IMLs autônomos). "Existe interferência direta, de intimidação mesmo", queixa-se.

Luiz Carlos ressalta que já houve legista com proteção da Polícia Federal devido a ameaças por conta de laudo que indicava tortura policial. Além disso, diz ele, o órgão é financeiramente desvalorizado na atual estrutura, o que leva a seu sucateamento.

No sistema prisional, sempre que alguém entra, sai ou é transferido, precisa passar pelo exame de corpo de delito. Durante esses procedimentos, são freqüentes os relatos sobre policiais que ficam na sala do médico, inibindo denúncias da vítima. Como se não bastasse, há casos em que o detido nem sequer é levado para a elaboração do laudo. Luiz Carlos defende a necessidade de exames periódicos nas pessoas privadas de liberdade. "Eles fazem o legista de palhaço", reclama. "Levam o camarada para você atestar que não há lesão e depois espancam, escondem, transferem de uma delegacia para outra. Depois, deixam-no incomunicável até que desapareçam as lesões."

Tais práticas fazem parte do que padre Gunther define como a "tática da transferência". Com a vítima de tortura sendo realocada, a apuração de denúncias perde-se na burocracia das notificações de translado, adiando em até meses a realização de um laudo médico. Gunther afirma que, muitas vezes, o juiz de execução penal - responsável por acompanhar as pessoas colocadas no sistema prisional - nem sabe quem está preso em sua jurisdição. "São Paulo se impôs, pela massa dos presos, que a própria Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) transfere sem precisar perguntar ao juiz", alega. "Por lei, seria o juiz que deveria autorizar [a transferência]".

Outra crítica diz respeito à lacuna de investimentos em policiamento investigativo. Luciano Maia lembra que há falta de treinamento e de agentes - e que, nesse contexto, "o suspeito torna-se fonte preciosa de informação". A valorização da perícia criminal, importante inclusive para solucionar casos de tortura, é defendida por Antonio Funari Filho, ouvidor da Polícia de São Paulo. "É preciso punir severamente a não manutenção do local do crime", afirma. "Desde que estou nesta função, não recebi nenhuma notícia de perícia feita no local de tortura", completa Pedro. Ele cita dados do Fundo Nacional de Segurança Pública para exemplificar a falta de atenção à área: em 2006, o montante destinado à perícia foi de apenas 4% dos recursos repassados aos estados.

Assim como no caso dos médico-legistas, a SEDH também defende a saída dos peritos criminais da estrutura da policia. "Se o secretário de Segurança tiver que fazer uma escolha entre comprar cem viaturas ou um comparador balístico (equipamento capaz de determinar a arma que disparou um projétil específico) que ninguém vai ver, ele vai comprar cem viaturas. Isso é óbvio", opina Pedro.

A continuação desta reportagem será publicada nos próximos dias

* Esta reportagem foi publicada em parceria com a revista Problemas Brasileiros

http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1313

Ribeirinho amazônico ameaçado de morte pede proteção ao governo federal


O presidente da Associação dos Moradores do Médio Xingu, Herculano Costa Silva está em Brasília para pedir proteção policial e cobrar do governo federal a criação da Reserva Extrativista do Médio Xingu, na Terra do Meio, no Pará. O decreto de criação da reserva extrativista está na Casa Civil da Presidência da República desde maio do ano passado. A demora no processo de criação tem colocado em risco a vida dos moradores da Resex, que sofrem ameaças feitas por grileiros e fazendeiros, que insistentemente ocupam a região com gado, promovendo desmatamentos e gerando insegurança entre os moradores.


Herculano Silva e Lauro Freitas Lopes, moradores da região do Médio Xingu, vão cumprir uma extensa agenda em Brasília, incluindo audiência na Secretaria Executiva do Ministério de Minas e Energia, que, segundo informações da própria Casa Civil, está paralisando o processo em função da possível necessidade de instalação de uma das hidrelétricas do complexo de Belo Monte naquele trecho do rio. Técnicos da Eletronorte e da Eletrobrás presentes em audiência pública realizada em Altamira dia 7 de março, entretanto, afirmam que a construção da hidrelétrica de Belo Monte não demandará outros barramentos ao longo do rio Xingu.


A futura Resex do Médio Xingu terá 303 mil hectares de área total. É uma faixa de terra que ocupa 100 quilômetros na margem esquerda de quem desce o rio Xingu em direção a Altamira. É considerada estratégica para consolidar o mosaico de áreas protegidas projetado para a região, que inclui terras indígenas e unidades de conservação estaduais e federais. A criação da Resex do Médio Xingu representa a possibilidade de regularização fundiária da região, que beneficiará cerca de 59 famílias locais, que vivem atualmente em clima de total insegurança.


No início do mês, o Procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, de Altamira, deu entrada numa ação cautelar com a finalidade de garantir a imediata retirada das pessoas destituídas de títulos da área onde será criada a Reserva Extrativista Médio Xingu. A Polícia Federal também instaurou inquérito policial para apurar ameaças de morte realizadas por pessoas que se declaram proprietárias (grileiros) das terras onde será criada a Reserva Extrativista Médio Xingu.

Vítimas do silêncio

Aline Durães imagem ponto de vista

Ruanda, 1994: oitocentas mil pessoas da etnia tutsi foram brutalmente assassinadas por membros da etnia hutu. Sudão, 2003: inicia-se um conflito que, ao longo de cinco anos, já dizimou mais de meio milhão de africanos negros de aldeias tradicionalmente agrícolas. Quênia, 2007: a suspeita de fraude no pleito que reelegeu o presidente Mwai Kibaki incitou uma onda de violência que, além de ter deixado mortos, obrigou cerca de 300 mil pessoas a fugirem de suas casas.

Esses são apenas alguns dos conflitos marcantes da história recente da África que, apesar de graves e com conseqüências nefastas para a população desse continente, aconteceram (e ainda acontecem) sob a mais velada negligência da grande mídia internacional. Poucos são os veículos de comunicação que divulgam e acompanham esses eventos. Mas, por que a imprensa mundial ignora as guerras étnicas africanas?

Para Franklin Trein, docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ), o abandono perpetrado pelos meios de comunicação à África reflete parte do interesse de países e empresas do Primeiro Mundo na região. Segundo o professor, quanto maior for o silêncio da mídia, menos a comunidade mundial saberá sobre genocídios que ocorrem em solo africano e, conseqüentemente, mais prodigiosa será a atuação dos capitais internacionais ali.

- A mídia vai atrás do que possa trazer retorno financeiro, mas divulgar a África não traz resultados econômicos imediatos. Ao falar pouco sobre o que acontece ali, a imprensa faz parecer menor a miséria que marca aquele território. Com isso, a comunidade internacional não cobra mudanças. Se ela cobrasse, os lucros obtidos pelos capitais internacionais com o mercado de armamento — fomentador de muitos daqueles conflitos — e com a liberdade de exploração das riquezas africanas se reduziriam – afirma o pesquisador.

Mohamed Hajji, professor da Escola de Comunicação (ECO), acredita que a influência dos interesses internacionais na África é tão grande que os embates étnicos são hoje ”guerras de milícias, de mercenários, guerras privatizadas entre consórcios multinacionais, onde nem se sabe mais se o objetivo é o controle dos recursos naturais, a luta pelo mercado de armas ou a garantia do próprio mercado de guerras mercenárias”.

Para ele, os meios de comunicação, em especial a mídia televisiva, optam por naturalizar o continente, através da divulgação de imagens naturais, como florestas tropicais, desertos e animais selvagens, por exemplo. Com isso, a grande imprensa mundial trabalha no sentido de associar a imagem da África ao de mundo primitivo, dificultando ao cidadão africano obter voz própria junto à comunidade internacional.

Muito além dos conflitos

Não são apenas as rivalidades étnicas que os veículos de comunicação deixam de reportar. As falhas de cobertura da grande mídia incluem o silêncio em relação à situação caótica em que se encontram milhões de africanos. Nos últimos anos, por exemplo, o apoio financeiro internacional destinado à África diminuiu drasticamente. Os EUA doam hoje para a região cerca de 10% do montante que doavam na década de 1970; já os recursos vindos da ajuda humanitária da União Européia representam, atualmente, apenas 30% do valor repassado há trinta anos.

A queda nas doações internacionais e o crescente descaso das nações agravaram o quadro de pobreza em que a África se encontra. Uma recente pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) apontou que um grande número de africanos sofre mais de uma enfermidade. Debates capazes de avaliar os impactos de informações como essas são raros nos jornais e revistas, pertençam eles ou não a países desenvolvidos.

- A África está abandonada à própria sorte. Ninguém está preocupado em curar a África. O mundo ocidental vê esse continente como um grande manancial a ser explorado no século XXII, mas não no século XXI. Acredito que o Primeiro Mundo, em especial, resolveu deixar que a natureza recicle a vegetação, a fauna e, inclusive, a população dessa região. Os países desenvolvidos têm condições de investir ali, mas não o fazem por serem arrogantes e por não possuírem qualquer sentimento de culpa em relação às grandes catástrofes da África – avalia Franklin Trein.

Para Trein – que elege o jornal francês Le Monde Diplomatique como um exemplo de veículo capaz de cumprir a tarefa de chamar a atenção da comunidade global para temas não-divulgados pela mídia convencional –, a saída para o problema reside nos sites informativos e nos jornalistas que buscam ser alternativa à grande imprensa.

- Nós, brasileiros, precisamos insistir nesse debate. Devemos ser solidários e lançar luz sobre as violências que, há anos, são perpetradas na África – convoca o pesquisador.

Na opinião de Mohamed Hajji, a mídia brasileira deixa a desejar não só no que tange à cobertura da África como no Jornalismo Internacional como um todo. Segundo o professor, a maior parte dos veículos brasileiros é viciada em clichês e preconceitos, além de apresentar uma submissão sistemática ao discurso da grande mídia internacional.

- Não há o menor esforço de informação do público, sua educação ou a formação de um olhar brasileiro ou latino-americano. Os motivos são tanto de natureza subjetiva cultural - a mentalidade do colonizado - como da ordem da economia política da informação: falta de estrutura (correspondentes e jornalista) e dependência dos grandes cartéis midiáticos transnacionais – explica Hajji.

Leia no Olhar Virtual:

http://www.olharvirtual.ufrj.br/2006/index.php?id_edicao=196&codigo=2