sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Milícias conduzem até a vida de moradores no Rio de Janeiro

28 de Agosto de 2008 - 11h11 - Última modificação em 28 de Agosto de 2008 - 11h25

Luciana Lima
Enviada especial


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Rio de Janeiro - “Uma mulher, que tinha um envolvimento lá - enfim, questão de adultério - foi posta na rua, teve a cabeça raspada e teve que descer o morro. Ela tinha um envolvimento com um traficante, que saiu dali depois que a milícia tomou o controle. Ela, por isso - ou por, não sei qual foi a postura dela depois que a milícia tomou o controle - ela foi colocada nua, pra fora de casa, teve a cabeça raspada e foi obrigada a descer o Morro do Sossego assim”.

O relato é de um morador de Bangu, subúrbio da região Oeste do Rio de Janeiro, e consta da pesquisa “Seis por Meia Dúzia?”, um estudo coordenado pelo professor Ignácio Cano, que ouviu moradores de áreas dominadas por milícias na capital e na Baixada Fluminense, lançada hoje (18).

O estudo baseou-se em 248 matérias de jornais, 3.469 registros do Disque-Denúncia, além de 46 entrevistas com moradores de áreas onde as milícias atuam. Os dados demonstram que, entre janeiro 2006 e abril de 2008, foram registradas 1.549 denúncias de extorsão em áreas dominadas por milícias e mais de 500 acusações de homicídios, o que confirma a natureza violenta desses grupos e o tipo de dominação que exercem.

O cotidiano se mostrou mais cruel em bairros onde o controle das milícias ultrapassa os limites da privacidade. Muitos procedimentos se assemelham às praticas do tráfico.

“Minha mãe mora em Bento Ribeiro [zona Norte]. Lá, puseram na caixa de correio dela um bilhete: segurança particular, mensalidade R$ 30,00. Eles entregaram a filipeta e avisaram em todas as casas que a partir daquele momento houve um controle tremendo. Não pode mais ouvir música alto (...) e eles não aceitam funk, eles não aceitam todo tipo de música”, descreve um morador do bairro Del Castilho, na zona Norte.

Pelo relato do mesmo morador, a milícia também decide se é a hora de as crianças irem para creches. “Eles disseram que ela informasse a eles mensalmente as crianças que estavam indo para a creche, porque eles iriam tentar averiguar quais eram os motivos. Se fosse um motivo banal, por exemplo, eles iriam denunciar para o conselho tutelar”, diz o morador.

De acordo com o coordenador da pesquisa, houve grande resistência dos moradores dessas áreas para falar sobre o assunto. “Conseguir testemunhos sobre milícias [foi] mais árduo que obter depoimentos sobre o tráfico, por exemplo. Apesar da garantia de sigilo, vários entrevistados se mostraram claramente receosos, se negaram a gravar”, comentou. Na maior parte das vezes, os moradores responderam às perguntas, fora do bairro, no ambiente de trabalho. As entrevistas foram realizadas entre outubro de 2007 e março de 2008.

Alguns depoimentos demonstram que a intensidade do controle sobre a população é variável, dependendo de cada área. De acordo com a pesquisa, em alguns lugares os milicianos atuam quase como um sistema de segurança privado, não interferindo na vida dos moradores de forma tão efetiva ou “desde que a ordem pública não seja ameaçada”, relata a pesquisa.

“Não, não colocaram regra nenhuma não. Pelo contrário, eles até eram bem solícitos com os moradores. Quando alguém chegava aqui mais tarde, acompanhavam até chegar em casa. A milícia aqui foi milícia ligth. Milícia braba tem lá na Carobinha [Favela da Carobinha localizada na região de Campo Grande, na zona Oeste]”, disse um entrevistado morador de Bangu, também na zona Oeste da capital.

As entrevistas demonstraram que algumas milícias restringem o direito de ir e vir dos moradores dos bairros onde se impuseram. Os moradores acabam impedidos de circular pelos “territórios” considerados inimigos. “Não se pode usar drogas e nem pensar em ir lá na Cidade de Deus”, disse um morador de Jacarepaguá. A Cidade de Deus é dominada por traficantes.

O pesquisador da Justiça Global Rafael Dias, que participou das entrevistas, destacou que o nível de interferência na vida particular é um ponto que diferencia a milícia da atuação do tráfico de drogas, por exemplo. As duas organizações interferem, mas de formas diferentes. “Quando há uma briga, o traficante faz uma mediação. Já houve caso do tráfico também espancar homens que batem em mulher. Mas a milícia apresenta uma cultura militar. É um discurso moralizante. Não pode beber, Não pode escutar funk. O discurso anti-drogas também é muito forte”, disse o pesquisador.

Apesar do discurso conservador, em alguns lugares a milícia optou por permitir a venda de drogas e o uso, dentro de casa. “Eles permitem que a pessoa use drogas em casa. Se pegam a pessoa fumando maconha ou crack na rua, eles dão uma dura. Se pegam de novo, eles matam”, destacou.

Presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Milícias, instalada na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado Marcelo Freixo destacou que, devido ao discurso moralizante da milícia, a população dos bairros passou a enxergá-las com bons olhos. “A população chegou a ver as milícias também como um mal menor. Isso porque existe um apelo moral. Eles chegam, dominam o território e dizem que não tem mais a droga, não tem mais a baderna, não tem mais o tiroteio com a polícia. E não tem mesmo porque a milícia não enfrenta a polícia. A milícia é a polícia”, afirmou o deputado.

No entanto, os efeitos nocivos do controle passam a ser sentidos pela população, na opinião de Freixo, logo após o início da atuação dos milicianos. “A população começa a sentir que vira refém desses grupos, que matam também. Eles não apenas matam as pessoas, eles matam e mostram que matam”, descreve o deputado.

Submetido a uma situação na qual as execuções sumárias são vistas como naturais, um morador de Santa Margarida, em Campo Grande, relata a ação de “limpeza” promovida pela milícia local. “Morador não morreu ninguém, era tudo bandido. O problema é que os bandidos eram todos conhecidos nossos. Tinha gente da minha idade, que cresceu comigo. A gente não podia nem falar que não, não matem. Era bandido, tinha que morrer, morreu”!

A CPI estima que existam hoje cerca de 150 milícias no estado do Rio de Janeiro. Quase sempre, seus integrantes podem ser identificados por um colete preto escrito “apoio”. No entanto, parte dos integrantes da milícia trabalha à paisana e se confunde com a população dos bairros. Em alguns bairros, os milicianos proibiram a população de usar roupas pretas, cor privativa dos integrantes do grupo.

A concentração é na cidade do Rio, mais especificamente na zona Oeste da cidade, ao longo da Avenida Brasil, da Linha Amarela e nas cidades mais desenvolvidas do interior do estado, principalmente do Sul Fluminense. A pesquisa abordou moradores de várias áreas, mas principalmente as que apresentaram maior número de denúncias contra a milícia no Disque-denúncia: Campo Grande, Anchieta, Canal do Anil (Jacarepaguá), Bangu, Campinho, Comendador Soares, Del Castilho, Guadalupe, Guaratiba, Itaguaí, Jacarepaguá, Paciência, Penha, Ramos, Santa Cruz, Sepetiba e Vila Kennedy.