segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

... penas e índios...





Festival Corredor Pano Julho 2010





Povo Kuntanawa ressurge na Amazônia e tenta resgatar suas raízes

Povo Kuntanawa ressurge na Amazônia e tenta resgatar suas raízes

Fabíola Ortiz

O povo indígena da etnia Kuntanawa no Acre, tido como extinto, ressurge agora a partir de seus descendentes misturados com os “brancos” e luta pela demarcação de suas terras no estado.

Eles eram apenas cinco em 1911 e hoje são cerca de 400. Os Kuntanawa foram quase exterminados no início do século XX com o avanço da extração da borracha, durante as perseguições armadas aos povos indígenas que acompanharam a abertura e a instalação dos seringais em todo o Acre.

Eles não falam mais a sua língua indígena, pertencente ao tronco linguístico Pano. Agora todos falam o português. Sua cultura praticamente desapareceu tendo sido esquecida.

“Nós somos a prova viva de que é possível erguer uma nação, trazer de volta aquilo que foi esquecido”, afirmou Haru Xinã Kuntanawa, embaixador mundial da paz pelas Nações Unidas.

O jovem Haru, de 28 anos, representa esse movimento de articulação e resgate cultural e histórico de seu povo. Jovem liderança indígena pertencente à etnia Kuntanawa, José Flávio do Nascimento (seu nome de registro) é um grande articulador das 11 etnias dos povos Pano. Ele tomou para si a importante missão de levar de volta à casa o seu povo, fortalecer os valores culturais e linguísticos dos Kuntanawa e promover o resgate de seus rituais sagrados há muito tempo perdidos.

“Acreditei que era possível e tenho certeza, mais do que nunca, que o meu povo erguerá a sua história novamente”, confia Haru ao lembrar o passado marcado pela matança de seus parentes.

“Me traz um sentimento de tristeza. É algo muito recente, não tem nem um século que passou o massacre de 1911. Hoje temos um pouco mais de 300 Kuntanawa e o meu objetivo é juntar o nosso povo de volta para casa”.


Eles são uma etnia em reconstrução nos mais diversos os sentidos: na língua, na pintura corporal, nos cantos, rituais sagrados com uso de medicinas da floresta e no sentimento de pertencimento à sua terra.

No final de julho, diversos povos do tronco Pano se reuniram na aldeia Kuntamanã, no Acre, neste que foi um primeiro movimento de revitalização de suas tradições. Na semana do 26 ao 31 de julho, os Kuntanawa realizaram o seu primeiro festival cultural, o “Corredor Pano”.

Neste, que foi um encontro para um momento de auto afirmação de sua unidade em meio às diferenças étnicas, estavam também os povos Pano, entre eles, os Huni Kuin, Yawanawa, Shanenawa, Shawãdawa, Jaminawa, Nukini, Marubo e Katukina.

“Quando os povos se juntam, têm uma força grande para recuperar e fortalecer as suas tradições. Temos todos uma história compatível dos povos”, salienta Haru. À beira do rio Tejo, na Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá, próximo à fronteira com o Peru, reuniram-se naqueles dias 200 pessoas, entre indígenas e convidados ‘brancos’, brasileiros e estrangeiros.

É através do contato com as etnias vizinhas do tronco Pano que se traçou a estratégia de reconstituir a língua de seu povo por meio de outras similares. Os esforços de reconstrução da língua têm sido empreendidos também por meio de fragmentos ainda vivos na memória da matriarca do grupo e de canções ‘ayahuasqueiras’ durante os rituais sagrados.

Demarcação

Reafirmar o sangue indígena passa também pela conquista de um território próprio. A demarcação da terra é uma das grandes causas que os Kuntanawa abraçam hoje em dia e que estão se preparando para enfrentar.

O desafio é que a área de 80 a 100 mil hectares de terra que o povo reivindica está inteiramente sobreposta pela Reserva Extrativista do Alto Juruá, onde os Kuntanawa são um dos principais responsáveis pela criação.

“Estamos lutando pela demarcação da nossa terra. Estamos dentro de uma reserva que foi criada pelo nosso povo na década de 80 para 90, quando houve a proposta de criação dessa reserva. Aqui era dominado pelos patrões com trabalho forçado indígena”, explica Haru ao afirmar que seus ancestrais têm as suas raízes naquelas terras.

Contudo, o modelo de reserva extrativista não é o “mais adequado” para os povos indígenas, argumenta a liderança. “Nós estamos reivindicando, mas essa terra a gente já considera demarcada. É a terra Kuntanawa. Temos raízes plantadas nessa terra. Estamos só esperando o momento oficial da demarcação pelo governo brasileiro”, defende. “O que nós queremos é proteger, chamar a atenção para a consciência ecológica”, promete.

O esforço de demarcação já vem de 2001, com a revindicação apresentada à Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 2003, o povo Kuntanawa obteve o apoio público do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá (Opirj) para garantir que os Kuntanawa sejam reconhecidos enquanto tais e tenham a sua área indígena demarcada.

Foram eles que ajudaram a fundar a reserva extrativista, no início da década de 90. Hoje, no entanto, discordam sobre o usufruto dos recursos naturais e minerais e passaram a reunir-se em torno do local onde se situa o agrupamento principal, a aldeia Kuntamanã (conhecida pelo antigo nome ‘Sete Estrelas’).

Primeira reserva extrativista a ser criada no Brasil, a Resex do Alto Juruá tem uma área de 506 mil hectares. Os indígenas reivindicam o equivalente a quase um quinto da área da reserva. No ano de 2008, o Ministério Público Federal no Acre ingressou com ação civil pública para obrigar a Funai e a União a procederem a demarcação e o registro das terras, localizadas na região do rio Tejo, próximo à vila de Restauração com cerca de 130 casas, pertencente ao município de Marechal Thaumaturgo.

Ciente que um processo de demarcação pode levar cerca de 10 anos ou até mais e gerar um debate polêmico na sociedade, Haru, em nome de seu povo, garante estar preparado: “Eu estou preparado de espírito, corpo, alma e coração para lutar por essa terra, proteger, manter e resgatar. Também já ganhamos novos aliados”, promete.

Rumo à aldeia Kuntamanã

Rumo à aldeia Kuntamanã

Fabíola Ortiz*

A jornada rumo à aldeia Kuntamanã, a oeste do estado do Acre, tem início em 22 de julho, às 20h10, em um dos poucos voos que partem para a capital acreana, Rio Branco, aterrissando por volta das 2h da manhã, após conexão em Brasília.

O nome Acre é oriundo da palavra ‘Áquiri’, escrita pelos exploradores dessa região da palavra ‘Uwakuru’, da língua do povo Ipurinã. A sua capital, Rio Branco, com cerca de 300 mil habitantes, metade da população, foi fundada por um cearense em 1882, com o nome de Seringal Empres


Destino: aldeia Kuntamanã, ou Sete Estrelas, na Reserva Extrativista do Alto Juruá, a oeste do estado do Acre, seguindo 10 horas de barco pelo rio Juruá e seu afluente, o rio Tejo.

Viagem: três dias de jornada e quase cinco mil quilômetros percorridos para chegar ao ‘Festival Cultural Indígena Corredor Pano’, que ocorreu entre os dias 26 e 31 de julho de 2010. Nessa semana, diversos povos do tronco linguístico Pano se reuniram na aldeia Kuntamanã, próximo à fronteira com o Peru, em uma grande confraternização para reacender o que há muito estava perdido: a memória e a língua já esquecida do povo Kuntanawa – o povo do coco. Hoje, eles somam cerca de 400 pessoas, depois de serem quase exterminados no início do século 20 com a abertura dos seringais.

Trajeto:
sete horas em dois voos comerciais, uma hora em um monomotor e outras 10 horas de barco floresta adentro.

Só após a anexação da porção do Acre ao território brasileiro, em 1904, que este povoamento foi elevado à categoria de vila, tornando-se sede do departamento do Alto Acre.

Ao longo dos anos mudou de nome sendo chamado de Penapólis – em homenagem ao então presidente Afonso Pena – e, em 1912, tornou-se Rio Branco, em referência ao Barão de Rio Branco, chanceler brasileiro cuja ação diplomática resultou no Tratado de Petrópolis que resolveu a disputa com a Bolívia e anexou a porção territorial ao Brasil.
Apesar de ser a maior e mais populosa cidade acreana, Rio Branco ainda permanece uma cidade pacata e tranquila para aqueles acostumados a centros urbanos movimentados e tumultuados na hora de pico.

O próximo voo de Rio Branco para a cidade de Cruzeiro Sul, a 650 quilômetros a noroeste da capital, só partiria no dia seguinte, às 13h20, única opção de ponte aérea para o segundo maior centro urbano do estado com não mais de 80 mil habitantes.

De Cruzeiro, parte-se do mesmo dia em um táxi aéreo para Marechal Thaumaturgo, pequeno município de cerca de 10 mil habitantes situado na fronteira com o Peru, último registro de espaço urbano antes de seguir viagem de barco floresta adentro.

Com uma densidade demográfica de 1,59 habitante por quilômetro quadrado, Marechal Thaumaturgo localiza-se em uma das áreas mais vazias em termos de povoamento do Brasil, com uma das menores densidades demográficas verificadas no país.

No município, há quatro terras indígenas, três delas fazem fronteira com o Peru e são áreas habitadas pelos povos das famílias linguísticas Pano e Aruak. As etnias que vivem nessas terras somam 800 pessoas, distribuídas em 17 aldeias.

Os Ashaninka, por exemplo, têm suas raízes nos povos andinos e sofrem grande influência dessa região, como a utilização de vestimentas de algodão e instrumentos musicais típicos. São um povo caçador, agricultor e também músicos.

A uma distância fluvial de Cruzeiro do Sul de 308 quilômetros, Thaumaturgo situa-se na entrada da Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá. Criada em 1990, foi a primeira reserva extrativista no Brasil com aproximadamente 500 mil hectares, abrigando algo em torno de 500 famílias que vivem espalhadas por colocações em diversos seringais.

O principal acesso à reserva é pelo rio Juruá e por seus afluentes, como o rio Tejo. A sede do município localiza-se à margem esquerda do rio Juruá, na foz do rio Amônia. A navegação em barcos de madeira ou alumínio de porte médio e pequeno e os táxis aéreos são os únicos meios de transporte e acesso à pequena Thaumaturgo.

A atividade econômica baseia-se principalmente no extrativismo vegetal, na agricultura de subsistência e pecuária. Os agricultores locais costumam cultivar feijão, macaxeira (também conhecida como aipim, a base da alimentação dos acreanos, tendo uma variedade de formas de preparo), batata-doce e amendoim.

Mesmo antes de iniciar o percurso ao interior da floresta, já é possível sentir o clima úmido, abafado e quente. Thaumaturgo já divide espaço com a floresta Amazônica.

Julho é considerado o período do “verão amazônico”. Apesar de estar um pouco abaixo da linha do Equador, que divide os dois hemisférios Norte e Sul, e a estação do ano ser correspondente ao inverno da parte sul do planeta Terra, a dinâmica climática na Amazônia é bastante diferente da do resto do Brasil.

Dias ensolarados e muito quentes caracterizam o verão na região da Amazônia que possui marcadamente duas estações ao ano: o verão com calor e sol a pino e o inverno com chuvas constantes e de cheia dos rios.

O trajeto de barco, ao longo de quase 10 horas pela Resex do Alto Juruá, é de muito calor e sol. O percurso é feito em barco de alumínio de largura não maior do que um metro e comprimento de quatro metros. O percurso é difícil devido à grande seca que a região enfrentava, a maior registrada nos últimos 20 anos. As alterações devido aos efeitos da mudança de clima são perceptíveis.

Segundo os próprios barqueiros da região, a cada ano tem se sentido mais a seca e havia tempo que não se tinha tido uma seca tão forte. Em muitos pontos, o rio se fazia ainda mais sinuoso com uma profundidade de 15 a 20 centímetros, o que dificultava a navegação, a principal forma de transporte entre os ribeirinhos.

Os barcos encalham constantemente e é preciso empurrá-los no pouco de corredeira que havia para pegar no embalo e, novamente, encalhar poucos metros à frente. É dessa forma que cheguei à aldeia Kuntamanã no final da tarde de 24 de julho, após um longo dia de viagem e de paisagens deslumbrantes.

Houve calorosa recepção dos indígenas Kuntanawa e outros representantes dos povos de língua Pano e visitantes, que já estavam assentados no espaço reservado às atividades do festival a espera para dar as boas vindas aos grupos de novos amigos que se reuniriam naquela semana de festividades.

Foi preciso viajar mais de 4.500 quilômetros, com quase setes horas de vo, para compartilhar e vivenciar experiências intensas. Ao longo de seis dias de atividades culturais, cerca de 200 pessoas, entre indígenas e não indígenas, se concentraram na maior floresta tropical do mundo para aprender e trocar com o povo do côco, que hoje luta pela sua sobrevivência.

Acompanhe nas próximas semanas um pouco mais sobre a história dos Kuntanawa; a conversa com o líder indígena Haru Xinã Kuntanawa, embaixador mundial da Paz das Nações Unidas e fundador da organização não-governamental Instituto Guardiões da Floresta (IGF); sobre o uso ritualístico da bebida sagrada ‘ayahuasca’ e sua espiritualidade.

Para acessar a primeira matéria da série, clique aqui.


Publicado em 18/11/2010.

Kuntanawa: memórias de um povo amazônico

Kuntanawa: memórias de um povo amazônico

Fabíola Ortiz

Eles foram quase exterminados no início do século 20 com o avanço dos seringais no estado do Acre, na região norte do Brasil. Sua língua se extinguiu e sua cultura praticamente desapareceu. Os Kuntanawa são um povo que hoje luta pelo resgate de sua identidade e tradição. Eles se misturaram com a população cabocla local no oeste do Acre e estiveram prestes a perder seus traços indígenas.

Em 1911, durante as perseguições armadas aos povos indígenas que acompanharam a abertura e a instalação dos seringais em todo o Acre, a etnia Kuntanawa, ou inicialmente grafada ‘Kontanawa’ – o povo do côco –, contabilizava apenas cinco sobreviventes. Atualmente, soma cerca de 400. Eles não falam mais a sua língua tradicional, pertencente ao tronco linguístico Pano, falam apenas o português.

Com o desafio de reavivar a memória e reforçar os laços de identidade, diversos povos do tronco Pano se reuniram na aldeia Kuntamanã, próxima à fronteira com o Peru, no final de julho, num grande encontro de confraternização. O “Festival Cultural Indígena Corredor Pano” representou o primeiro movimento de mobilização e revitalização das tradições indígenas perdidas.

Em um momento de auto-afirmação de sua unidade em meio às diferenças étnicas, estavam todos lá: Huni Kuin, Yawanawa, Shanenawa, Shawãdawa, Jaminawa, Nukini, Marubo, Katukina e Kuntanawa. Todas essas etnias foram convidadas e protagonistas do que seria o grande encontro dos povos de língua Pano.

Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), a população indígena do Acre é de cerca de 10 mil, e a maioria é composta por povos de língua Pano. Essa família linguística é falada por povos especialmente no noroeste do Brasil e também na Bolívia e Peru. Nesses três países, o Pano possui cerca de três dezenas de línguas faladas por aproximadamente 40 mil pessoas, sendo a maioria no Peru com cerca de 30 mil, outros 8 mil no Brasil e não mais do que mil na Bolívia.

Das línguas que compõem a família Pano, estima-se que existam 26 vivas, isto é, línguas ainda faladas. Contudo, uma porção expressiva dessas 26 se encontra em processo de extinção, correndo o risco de se juntar às outras 10 que já desapareceram.

O festival

Foram seis dias de atividades de confraternização e rodas de ‘mariri’ no terreiro – dança indígena coletiva em que todos dão os braços num ritmo binário ao som de ‘maracá’, o chocalho indígena utilizado em festas, cerimônias religiosas e guerreiras feito a partir de uma cabaça seca. Houve muita festa, brincadeiras, cantos, pescaria, trocas de presentes e rituais sagrados com o consumo de rapé e ayahuasca, o cipó da Amazônia bebido de forma ritualística pelos povos do Acre.

A diversidade não foi só entre os povos indígenas da língua Pano que compareceram com sua trupe de pajés, cada um representando a sua respectiva etnia, mas também entre os não índios, convidados brasileiros e estrangeiros, que foram conferir o festival, levar um pouco de sua cultura e aprender sobre os costumes e a vida na floresta amazônica.

Tinha gente de todo o tipo: de acreanos, paulistas, cariocas e candangos, até alemães, suíços, ingleses e representantes indígenas da Groenlândia, no Canadá. Inclusive um xamã esquimó que alimentou a diversidade étnica com o ritual da tenda do suor em pleno rio amazônico. Foram seis dias de reunião e pluralidade em que cerca de 200 pessoas vivenciaram experiências mais diversas de estar no coração da Amazônia, a maior floresta tropical do mundo e a maior concentração de água doce e biodiversidade do planeta.

Além das rodas de cantos e danças, houve também o grito de preservação da Amazônia. O maior perigo da Amazônia hoje é o desmatamento, garante Haru Xinã, o jovem líder indígena Kuntanawa que se lançou ao desafio de reanimar as tradições de seu povo. A devastação da floresta tem sido motivo de grande preocupação por parte dos Kuntanawa que vivem às margens do rio Tejo, na Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá, próximo à fronteira com o Peru, situada no extremo oeste do Acre. A exploração de uma forma irresponsável dos recursos da floresta fez com que os povos Pano ali reunidos no ‘Corredor Pano’ lançassem um apelo para a recuperação da floresta.

Acompanhe nas próximas semanas a história dos Kuntanawa, o povo em reconstrução; a longa viagem pelos rios da Amazônia até chegar a aldeia Kuntamanã ou Sete Estrelas, onde ocorreu o festival; a conversa com o líder indígena Haru Xinã Kuntanawa, embaixador mundial da paz das Nações Unidas e fundador da organização Instituto Guardiões da Floresta (IGF); o uso ritualístico da bebida sagrada ‘ayahuasca’ e a espiritualidade do povo Kuntanawa.

Publicado em 8/11/2010.