segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Rumo à aldeia Kuntamanã

Rumo à aldeia Kuntamanã

Fabíola Ortiz*

A jornada rumo à aldeia Kuntamanã, a oeste do estado do Acre, tem início em 22 de julho, às 20h10, em um dos poucos voos que partem para a capital acreana, Rio Branco, aterrissando por volta das 2h da manhã, após conexão em Brasília.

O nome Acre é oriundo da palavra ‘Áquiri’, escrita pelos exploradores dessa região da palavra ‘Uwakuru’, da língua do povo Ipurinã. A sua capital, Rio Branco, com cerca de 300 mil habitantes, metade da população, foi fundada por um cearense em 1882, com o nome de Seringal Empres


Destino: aldeia Kuntamanã, ou Sete Estrelas, na Reserva Extrativista do Alto Juruá, a oeste do estado do Acre, seguindo 10 horas de barco pelo rio Juruá e seu afluente, o rio Tejo.

Viagem: três dias de jornada e quase cinco mil quilômetros percorridos para chegar ao ‘Festival Cultural Indígena Corredor Pano’, que ocorreu entre os dias 26 e 31 de julho de 2010. Nessa semana, diversos povos do tronco linguístico Pano se reuniram na aldeia Kuntamanã, próximo à fronteira com o Peru, em uma grande confraternização para reacender o que há muito estava perdido: a memória e a língua já esquecida do povo Kuntanawa – o povo do coco. Hoje, eles somam cerca de 400 pessoas, depois de serem quase exterminados no início do século 20 com a abertura dos seringais.

Trajeto:
sete horas em dois voos comerciais, uma hora em um monomotor e outras 10 horas de barco floresta adentro.

Só após a anexação da porção do Acre ao território brasileiro, em 1904, que este povoamento foi elevado à categoria de vila, tornando-se sede do departamento do Alto Acre.

Ao longo dos anos mudou de nome sendo chamado de Penapólis – em homenagem ao então presidente Afonso Pena – e, em 1912, tornou-se Rio Branco, em referência ao Barão de Rio Branco, chanceler brasileiro cuja ação diplomática resultou no Tratado de Petrópolis que resolveu a disputa com a Bolívia e anexou a porção territorial ao Brasil.
Apesar de ser a maior e mais populosa cidade acreana, Rio Branco ainda permanece uma cidade pacata e tranquila para aqueles acostumados a centros urbanos movimentados e tumultuados na hora de pico.

O próximo voo de Rio Branco para a cidade de Cruzeiro Sul, a 650 quilômetros a noroeste da capital, só partiria no dia seguinte, às 13h20, única opção de ponte aérea para o segundo maior centro urbano do estado com não mais de 80 mil habitantes.

De Cruzeiro, parte-se do mesmo dia em um táxi aéreo para Marechal Thaumaturgo, pequeno município de cerca de 10 mil habitantes situado na fronteira com o Peru, último registro de espaço urbano antes de seguir viagem de barco floresta adentro.

Com uma densidade demográfica de 1,59 habitante por quilômetro quadrado, Marechal Thaumaturgo localiza-se em uma das áreas mais vazias em termos de povoamento do Brasil, com uma das menores densidades demográficas verificadas no país.

No município, há quatro terras indígenas, três delas fazem fronteira com o Peru e são áreas habitadas pelos povos das famílias linguísticas Pano e Aruak. As etnias que vivem nessas terras somam 800 pessoas, distribuídas em 17 aldeias.

Os Ashaninka, por exemplo, têm suas raízes nos povos andinos e sofrem grande influência dessa região, como a utilização de vestimentas de algodão e instrumentos musicais típicos. São um povo caçador, agricultor e também músicos.

A uma distância fluvial de Cruzeiro do Sul de 308 quilômetros, Thaumaturgo situa-se na entrada da Reserva Extrativista (Resex) do Alto Juruá. Criada em 1990, foi a primeira reserva extrativista no Brasil com aproximadamente 500 mil hectares, abrigando algo em torno de 500 famílias que vivem espalhadas por colocações em diversos seringais.

O principal acesso à reserva é pelo rio Juruá e por seus afluentes, como o rio Tejo. A sede do município localiza-se à margem esquerda do rio Juruá, na foz do rio Amônia. A navegação em barcos de madeira ou alumínio de porte médio e pequeno e os táxis aéreos são os únicos meios de transporte e acesso à pequena Thaumaturgo.

A atividade econômica baseia-se principalmente no extrativismo vegetal, na agricultura de subsistência e pecuária. Os agricultores locais costumam cultivar feijão, macaxeira (também conhecida como aipim, a base da alimentação dos acreanos, tendo uma variedade de formas de preparo), batata-doce e amendoim.

Mesmo antes de iniciar o percurso ao interior da floresta, já é possível sentir o clima úmido, abafado e quente. Thaumaturgo já divide espaço com a floresta Amazônica.

Julho é considerado o período do “verão amazônico”. Apesar de estar um pouco abaixo da linha do Equador, que divide os dois hemisférios Norte e Sul, e a estação do ano ser correspondente ao inverno da parte sul do planeta Terra, a dinâmica climática na Amazônia é bastante diferente da do resto do Brasil.

Dias ensolarados e muito quentes caracterizam o verão na região da Amazônia que possui marcadamente duas estações ao ano: o verão com calor e sol a pino e o inverno com chuvas constantes e de cheia dos rios.

O trajeto de barco, ao longo de quase 10 horas pela Resex do Alto Juruá, é de muito calor e sol. O percurso é feito em barco de alumínio de largura não maior do que um metro e comprimento de quatro metros. O percurso é difícil devido à grande seca que a região enfrentava, a maior registrada nos últimos 20 anos. As alterações devido aos efeitos da mudança de clima são perceptíveis.

Segundo os próprios barqueiros da região, a cada ano tem se sentido mais a seca e havia tempo que não se tinha tido uma seca tão forte. Em muitos pontos, o rio se fazia ainda mais sinuoso com uma profundidade de 15 a 20 centímetros, o que dificultava a navegação, a principal forma de transporte entre os ribeirinhos.

Os barcos encalham constantemente e é preciso empurrá-los no pouco de corredeira que havia para pegar no embalo e, novamente, encalhar poucos metros à frente. É dessa forma que cheguei à aldeia Kuntamanã no final da tarde de 24 de julho, após um longo dia de viagem e de paisagens deslumbrantes.

Houve calorosa recepção dos indígenas Kuntanawa e outros representantes dos povos de língua Pano e visitantes, que já estavam assentados no espaço reservado às atividades do festival a espera para dar as boas vindas aos grupos de novos amigos que se reuniriam naquela semana de festividades.

Foi preciso viajar mais de 4.500 quilômetros, com quase setes horas de vo, para compartilhar e vivenciar experiências intensas. Ao longo de seis dias de atividades culturais, cerca de 200 pessoas, entre indígenas e não indígenas, se concentraram na maior floresta tropical do mundo para aprender e trocar com o povo do côco, que hoje luta pela sua sobrevivência.

Acompanhe nas próximas semanas um pouco mais sobre a história dos Kuntanawa; a conversa com o líder indígena Haru Xinã Kuntanawa, embaixador mundial da Paz das Nações Unidas e fundador da organização não-governamental Instituto Guardiões da Floresta (IGF); sobre o uso ritualístico da bebida sagrada ‘ayahuasca’ e sua espiritualidade.

Para acessar a primeira matéria da série, clique aqui.


Publicado em 18/11/2010.

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