quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

QUÊNIA

Classes e parentescos nos campos da morte do Quênia

Oduor Ong’wen* - Jornalista, membro do Fórum Social Africano
Publicado em 15 de fevereiro de 2008.
Tradução: Patrick Wuillaume


É fácil – e até mesmo tentador – rotular a violência que tomou conta do Quênia durante os últimos meses como um ressurgimento lamentável, mas não totalmente inesperado, das disposições atávicas ontológicas africanas. Muitos analistas, particularmente no Ocidente, alegaram que embora a ruptura do estado de paz e convivência mútua tenha sido desencadeada pelas fraudes do atual presidente nas últimas eleições, o que se seguiu nada tinha a ver com isso em particular nem com a política em geral. Teria a ver com uma oportunidade para que vizinhos – fundados sobre um nacionalismo estreito e que haviam vivido até então em harmonia artificial, embora guardando um desprezo patológico mútuo pudessem acertar contas uns com os outros. Isso pode ser verdade, mas apenas em parte. A crua realidade é que a crise do Quênia pôs à mostra as tensões de classe que vinham aflorando de modo esparso há mais de cem anos.

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Virtualmente afastada dos benefícios da prosperidade e da modernidade de que desfruta o Norte, a África sobrevive e existe na periferia da economia global. Não surpreende que, enquanto os observadores da União Européia, do Commonwealth, e a equipe de observadores locais reconheciam o fato de que as eleições presidenciais tinham sido fraudadas, o Ocidente insistia que, por se tratar da África, a subversão deveria ser ignorada "para o bem da unidade e da estabilidade do país". Esse eufemismo pode ser traduzido, na verdade, pela frase "nossos interesses estratégicos, nossos investimentos, nossas férias e safáris são mais importantes do que seus direitos democráticos; portanto, calem-se, acreditem e obedeçam".

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Enquanto grande parte da população dos países industrializados é abastada, a maior parte do povo africano está empobrecida, desnutrida, é analfabeta e não dispõe de moradia nem de alimentação decentes. Enquanto as economias dos países industrializados são fortes e resistentes – oferecendo esperança e segurança ao seu povo –, os países da África são majoritariamente fracos e vulneráveis e nada têm a oferecer ao povo africano, a não ser o desespero e a carência. Enquanto os países do Norte controlam seus recursos e destinos, os do Sul, principalmente os da África, são vulneráveis a fatores externos e lhes faltam independência funcional e soberania. Este é o contexto no qual devemos procurar entender o amor e a vinculação à terra existentes em muitos países da África como o Quênia e o Zimbábue. A propriedade de um pedaço de terra, mesmo que pequeno, confere uma sensação de segurança e independência.

Não se deve contextualizar a desordem no Quênia sem avaliar primeiro a questão nacional queniana. Os quenianos não estão polarizados porque pertencem a diferentes subnacionalidades. Isso ocorre porque se relacionam de modo diferente com os recursos e forças produtivas do país. E o cerne da questão nacional é a terra.

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A fraude presidencial

Voltemos agora a abordar a questão que desencadeou a série de eventos violentos – ou seja, a fraude nas eleições presidenciais. Segundo o boletim emitido pela Comissão Eleitoral do Quênia (ECK) às 4:07 horas do dia 20 de dezembro de 2007, o Presidente no poder, Mway Kibaki, perdia de Raila Odinga por mais de 1 milhão de votos: Odinga tinha 3.734.972 votos, enquanto o presidente Mway Kibaki tinha 2.269.612 votos. Foi nesse momento que a comissão e o Partido de Unidade Nacional (PNU), de Kibaki, estimaram o número de votos necessários a serem acrescentados ao total de Kibaki e o número de votos a serem retirados de Odinga para que Kibaki alcançasse e ultrapassasse seu rival.

Naquele dia, resultados aparentemente recebidos no dia anterior – mas que não tinham sido divulgados aguardando o momento "oportuno"– foram alterados (às vezes, mais de uma vez) para eliminar a diferença. A ECK havia anunciado os resultados de 176 das 210 seções eleitorais, que davam a Odinga 4.046.010 votos e a Kibaki, 3.760.233. Duas horas depois, entretanto, o presidente da Comissão Eleitoral surpreendeu a nação com o anúncio de que, após apurados os resultados de 189 postos eleitorais, Odinga só tinha 3.880,053 votos contra 3.842.051 de Kibaki. Era a arte de contar para trás!

Tanto o partido de Odinga, o Orange Democratic Movement (ODM), quanto as diversas equipes de observadores detalharam a forma pela qual a fraude se deu. O que não foi dito foi a razão pela qual Odinga tinha de ser impedido, a qualquer custo, de assumir a Presidência da República do Quênia.

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A campanha de Odinga propunha cinco metas básicas: tratamento da questão das desigualdades econômicas e sociais; devolução do poder e dos recursos do centro para as regiões, em um contexto de complementaridade; erradicação da corrupção e da injustiça administrativa; provimento, pelo Estado, dos serviços sociais básicos; e busca de uma política externa e pan-africanista progressista.

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O primeiro ataque a sua campanha foi a denúncia de que Odinga estava tentando introduzir o comunismo pela porta de trás. Foram espalhados boatos assustadores de que o fornecimento dos serviços básicos acarretaria em um aumento de impostos. Finalmente, os seguidores de Kibaki abordaram a questão crucial; a terra, demonizando a devolução dos poderes, considerando-a como um instrumento para desapossar o povo Kikuiu estabelecido no Vale da Fenda e em outras áreas.

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Herança Complicada

Observar os acontecimentos no Quênia apenas sob a ótica da etnia nos dá uma visão apenas nebulosa da situação. Isto não significa que a etnia não constitua um fator importante. No entanto, ela é usada como uma espécie de droga que os governantes continuam a administrar às suas vítimas para toldar sua visão. É uma visão escapista. Não vi nenhum residente Kikuiu de Karen, elegante subúrbio de Nairóbi, matar a machadadas seus vizinhos de Luo e Kalenjin, ou pior, atirarem uns nos outros, embora a maioria deles possua revólveres.

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Com a independência, o Quênia, como todo o resto da África, herdou uma estrutura que veio acompanhada de um cenário de forte dependência e corrupção, tanto do ponto de vista econômico como político.

No setor econômico, o país herdou uma economia altamente atrasada, baseada no regime de subsistência agrícola dominada pelo campesinato e pela produção e exportação de suas safras agrícolas girando em torno de três produtos (café, chá e piretro), cuja produção estava concentrada quase que totalmente nas mãos de fazendeiros estrangeiros.

A produção de commodities era feita em pequena escala, e dominada por agricultores retrógrados, extremamente supersticiosos, que surgiram após um pesadelo de décadas de opressão e desumanização – esta era a situação predominante das atividades rurais no Quênia. A maioria da população vivia em situação de subdesenvolvimento econômico sem perspectivas de melhora; a agricultura estava fragmentada em minúsculos lotes de terra, cada um deles quase insuficiente para sustentar uma única família.

Para que houvesse um desenvolvimento realmente significativo, era necessário e urgente tratar esse problema como questão prioritária. Contudo, as lideranças recentemente instaladas passaram a depender dos “especialistas” do Ocidente, cujas experiências eram unicamente com as metrópoles e cujos antecedentes eram empresariais.

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O Quênia – e todo o continente africano – encontra-se em posição desfavorável e, portanto, irremediável dentro do sistema econômico global. O país está economicamente ligado, principalmente, às economias capitalistas da Europa industrializada – legado tanto do tráfico de escravos como do passado colonial sustentados pelo poder econômico relativo da Europa, e conseqüência das estratégias desenvolvimentistas adotadas pelas lideranças pós-colonialistas.

http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2203

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